Um garoto passa por mim e
joga discretamente um papel de bala no chão, apesar de ter uma lixeira a alguns
metros de distância, achando que não fará a mínima diferença; passo por um
mendigo que me pede esmolas, mas eu não dou, diferente do cara que vem logo
atrás de mim, que dá uns trocados a ele e caminha como quem já cumpriu o dever
de casa, porém sem querer saber o que acontecerá com ele amanhã. Viro-me a
algumas esquinas, desço uma rua grande e larga, e quando estou quase chegando à
escola, vejo um homem tropeçar e derrubar várias caixas do outro lado da rua;
ele se apressa para pegar todas as caixas do chão e equilibrá-las em sua mão
novamente, enquanto várias pessoas passam apressadas por ele e carros buzinam;
apenas um único ser chega a tempo para ajudá-lo com a última caixa. Para terminar,
chego a escola e me deparo com Marcelo sendo espancado por três valentões no
pátio, enquanto um grande público assiste em pé.
Meu coração começa a
acelerar. Corro para o ringue.
Quando Marcelo entrou em
minha sala, no começo do ano, ele não sabia o que lhe esperava. Marcelo não
podia imaginar que os maiores babacas do colégio estariam ali, prestes a tornar
a vida dele um inferno. E tudo o que ele teve de fazer para contribuir com isso
foi: absolutamente nada. Marcelo foi apenas ele mesmo, como sempre: um garoto quieto,
sem amigos, que apenas gostava de ficar na dele. E não havia nenhum problema
com isso. Eu, pelo menos, não me importava. Mas havia pessoas que sim.
Marcelo era o primeiro a
chegar e o último a sair. Ele chegava bem cedo para garantir o seu lugar
preferido: a última carteira, no canto oposto ao da janela. No começo, havia um
ar de mistério e isso dava um certo charme a ele: um garoto bonito de poucas
palavras. As garotas ficavam doidinhas só de olhar para ele. As primeiras
semanas foram uma tortura para mim porque elas não paravam de falar nele e
ficavam implorando para eu ir até ele conseguir algumas informações. Eu dizia
para elas mesmas tomarem coragem e irem até ele, mas elas nunca o fizeram, com
o pretexto de que se ele quisesse falar com elas, ele mesmo falaria. Mas estava
na cara que Marcelo era tímido demais para isso. Então, não demorou muito para
que O Garoto Gato da Minha Sala logo
se tornasse O Garoto Caladão da Minha
Sala.
E eu me perguntava, o
tempo todo, o porquê de Marcelo ter se tornado um alvo. Era algo que eu não entendia
de jeito nenhum, que não entrava na minha cabeça. Só por que ele era quieto?
Que mal ele estava fazendo para alguém? Por que se incomodavam tanto com isso?
Tudo bem que todos ali estavam sujeitos àqueles garotos babacas, mas parecia
que Marcelo era o mais afetado, porque eu sempre via alguém fazendo uma brincadeira
de mal gosto com ele ou uma piada sem graça para ofendê-lo ou machucá-lo.
As pessoas o julgavam.
Viam aquele garoto isolado no fundo da sala, sempre com blusas de frio, e
imaginavam mil coisas. Porém, nunca pensavam em se aproximar dele, em conversar
e conhecê-lo. Eu fui a primeira a fazer isso, dois meses depois, quando nossa
turma teve de fazer um trabalho em dupla e eu o escolhi como meu parceiro, pois
sabia que mais ninguém o faria. E foi a melhor decisão que eu poderia tomar,
pois foi aí que vi quem realmente era Marcelo: muito mais que um garoto de
poucas palavras, afinal.
Marcelo era muito bom em
matemática, acabamos tirando a nota máxima no nosso primeiro trabalho e fizemos
muitos outros juntos, onde nossas notas também foram excelentes. Minhas amigas,
é claro, ficaram com ciúmes, mas eu não podia deixar de dar atenção àquela nova
amizade que estava se formando. Eu estava sentindo que algo de bom sairia de
tudo aquilo. Eu passei até a chegar mais cedo à escola para ficar conversando
com Marcelo e não demorou muito para eu ver o quanto ele era uma pessoa
incrível e o quanto que ele tinha potencial. Ver que Marcelo queria fazer a
diferença no mundo, que o seu sonho era fazer Psicologia e Serviço Social e ajudar
as pessoas que passavam por problemas na sociedade, foi algo que me surpreendeu
de verdade. Ele não queria ser rico ou famoso, só queria fazer a coisa certa, o
que é bem raro hoje em dia.
Além de amar matemática,
Marcelo gostava também de política e tinha muitas ideias para revolucionar o
mundo. Eu ficava impressionada com a maneira que ele tratava cada assunto, como
ele tinha uma opinião bem formada sobre tudo e como ele sabia se posicionar e
argumentar. Vendo-o quieto ali na dele, eu nunca pude imaginá-lo falando daquele
jeito, e foi muito bom ver que aos poucos ele ia se soltando e se abrindo
comigo. Eu estava gostando desse Marcelo: o que gostava de desenhar e pintar
nos tempos livres; o que gostava de crianças e de fazer coisas boas; o que
queria fazer desse mundo um lugar melhor. A cada dia que o conhecia eu me
surpreendia com o que ele tinha a oferecer.
Uma ótima coisa que
aconteceu ao me aproximar de Marcelo foi que os garotos babacas da minha sala
começaram a irritá-lo menos. Só enchiam o saco dele quando eu não estava por
perto para defendê-lo, talvez com medo de que eu me descontrolasse novamente e
gritasse com eles. Marcelo não gostou muito quando isso aconteceu:
— Serio, Sarah — disse
ele — não precisa fazer isso.
— Não vou deixar ninguém
mexer com meu amigo aqui.
Acho que foi o momento em que selamos a nossa
amizade. Eu olhei para aqueles olhos doces e para aquele sorriso tranquilo... E
enxerguei tudo o que ninguém mais podia enxergar. Não se podia ver tudo aquilo
vendo-o de longe, criando conceitos antecipados, apenas com base na sua
aparência, ou na maneira de se vestir ou qualquer outro fator externo, como
minhas amigas faziam. Eu queria que todos passassem a vê-lo da mesma forma que
eu, mas sempre colocavam um obstáculo invisível na frente. Minhas amigas até o
cumprimentavam por educação, mas não queriam conhecê-lo como eu, com medo do
que encontrariam.
Mas um dia tudo mudou. Eu
estava começando a ter dúvidas sobre o que sentia por Marcelo, começando a
achar que eu estava apaixonada. Não sei se foi a maneira com que eu olhava para
ele ou por que eu passei a ficar muito tempo do seu lado, mas minhas amigas
começaram a desconfiar se tudo aquilo era apenas amizade. Eu não sabia. Só não
queria acreditar em uma coisa que não fosse verdade, porque Marcelo até então
só tinha demonstrado que era o meu amigo, e nada a mais. E eu não estava a fim
de destruir aquilo que havia acabado de começar, porém, minha amiga Ellen
insistia:
— Fala sério, você tem uma
pequena queda por ele — ela disse.
E bem nessa hora, em que
Ellen falava, Gustavo passou. E em questão de segundos já estava todo mundo
comentando que eu estava a fim do Marcelo, porque era assim que funcionava
quando você abria a boca. Eu não soube onde enfiar a cara. Marcelo, pelo menos,
pareceu bem tranquilo; continuou na dele, como sempre, e talvez isso seja o que
mais tenha irritado os garotos babacas da minha sala.
— Ah, qual é, cara! —
Gustavo, talvez o babaca mais admirável do colégio, estava ali, de pé em frente
à mesa de Marcelo. — Tem uma gata ali dizendo que é a fim de você e você não
vai fazer nada?
Foi a primeira vez que
Marcelo falou em voz alta:
— Somos apenas amigos.
Gustavo começou a rir, chamando
os colegas para rirem com ele. Eu o achava um completo idiota. Mas havia gente
que gostava.
— Pode ser a sua última
chance de pegar uma garota como essa, cara.
— Eu não quero pegar uma
garota como essa, cara — Marcelo disse, totalmente sério e demonstrando firmeza
na voz.
Eu fiquei um pouco chateada,
confesso. Mas, como ele mesmo disse, éramos apenas amigos, e pelo visto seria
para sempre assim.
Já Gustavo, estava
irritado, isso dava para ver nos seus olhos. Mas ele continuava rindo, a sala o
ajudando. Todos atentos, curiosos com o que iria acontecer. Alguns torciam por
uma briga. Eu estava prestes a me levantar e gritar com eles.
— Qual é, cara! Você por
acaso é gay?
Dito isso, começou uma
grande provocação por parte da sala. Os mais atentados pediam para Marcelo
revidar; ele tinha de revidar, não podia deixar aquilo barato! Então Marcelo se
levantou e a sala prendeu a respiração. Inclusive eu, pois não esperava que ele
fosse se levantar. O garoto ficou olho a olho com Gustavo e disse, com a maior
tranquilidade:
— Sim, eu sou gay. Algum
problema?
A sala continuou quieta.
Gustavo começou a rir,
mas logo parou.
— Não... É sério?
Mas Marcelo não precisou
dizer mais nada. Era a verdade. Não havia nenhuma possibilidade de ele ficar comigo,
porque ele era gay. Marcelo era Gay... Um gay, e não era uma piada. Gustavo
ficou ali por alguns segundos, olhando para ele, querendo lidar com aquilo, mas
não conseguiu. Já era o bastante. Sentiu repulsa. Saiu de perto, sentou-se em
seu lugar, afastado de Marcelo, e mais nada foi dito por ninguém até o soar do
último sinal, quando todos nós fomos para as nossas casas.
Eu queria acreditar que
nada mudaria, que tudo continuaria como antes, que Marcelo e eu continuaríamos
amigos... Entretanto, eu não soube como lidar com aquilo. Foi como se de uma
hora para outra eu tivesse me esquecido de quem Marcelo realmente fosse. De
repente, fomos nos distanciando um do outro até pararmos de nos falar, enquanto
os dias de Marcelo ficavam cada vez mais difíceis. Se antes alguém pelo menos
falava um bom dia, ou um oi, agora não faziam nem o esforço de olharem para
ele. Até os professores começaram a tratá-lo diferente
Os garotos voltaram com
suas brincadeiras infantis e a cada dia conseguiam piorar. Eu, dessa vez, não
fiz nada para impedir; via as frequentes faltas de Marcelo, via o quanto que
ele emagrecia, via-o cada vez mais triste e distante, e não fazia nada. E os
garotos não paravam, iam aumentando o nível das brincadeiras como se nada fosse
o bastante. Frequentemente se ouvia a palavra bichinha ou marica. Gustavo,
especialmente, gostava muito do termo bichinha
frienta. Mas Marcelo não arrumava confusão. Ele continuava na sua, e isso
era o que eu mais admirava nele, pois em seu lugar eu já teria explodido.
Mas ninguém aguenta tanto
por muito tempo.
Naquele dia, em especial,
Marcelo havia chegado um pouco atrasado, estava correndo para conseguir o seu
lugar habitual e, sem querer, acabou esbarrando em um garoto da nossa sala que,
por sua infelicidade, era o babaca.
Quando Gustavo viu que era Marcelo, ficou furioso e jogou-o no chão, dizendo
para que não encostasse nele outra vez. Marcelo se levantou rapidamente, disse
que havia sido sem querer, mas Gustavo empurrou-o outra vez para o chão,
xingando-o de marica. E foi a gota.
Disseram que Marcelo estava ganhando a briga e por isso que os dois amigos de
Gustavo vieram ajudá-lo. Foi quando eu cheguei... Marcelo no chão, os três covardes
dando chutes e socos em seu estômago, o rosto de Marcelo já todo sanguentado, e
o público assistindo de pé, só faltando aplaudir. Uns poucos falavam indignados
para pararem, mas ninguém agia.
Por isso, assim que vejo a
cena, logo corro para separá-los, porém, minha amiga me puxa pelo braço.
— O que vai fazer? — Ellen
diz, indignada.
— Ellen! Eu preciso
ajudá-lo. Me solta!
— Ajudar quem, Sarah? Ajudar
um gay? Ele está pagando pelo que merece, e não há nada o que possamos fazer
por isso. Você sabe muito bem! Não podemos salvá-lo.
— O quê?!
Não acredito no que estou
ouvindo. Por isso paro e encaro os olhos de Ellen. Eu não havia percebido que
ela se tornara como muitos deles... cegos pela sua religiosidade, sem enxergar
aquilo que realmente importa.
Ellen e eu crescemos na
mesma igreja, aprendemos as mesmas coisas juntas, tivemos quase as mesmas
experiências, mas as nossas opiniões se diferiram ao longo do tempo. Eu comecei
a enxergar a igreja de uma maneira que ela não enxergava. Comecei a duvidar da
igreja e acreditar mais no evangelho. Eu achava que poderia fazer Ellen ver da
mesma forma que eu; tivemos várias conversas sobre isso, eu pensava que os
olhos dela estavam se abrindo, mas pelo visto eu estava enganada.
— Ellen... O que importa
que ele é gay? Você por acaso acha mesmo que é superior a ele? Jesus não o
trataria diferente! Jesus andava com todo o tipo de pessoas, exceto, sabe com
quem? Com os hipócritas! E é exatamente isso o que você é.
— No que você está
falando Sarah? — Ellen larga o meu braço, — Não foi você que se tornou a amiga
dele para depois largá-lo? — vira as costas e vai embora.
É o fim do espetáculo.
Enquanto chega o inspetor, o zelador, o diretor e a turma toda para separar a
briga, fico pensando o quanto que Ellen está certa. Eu não sou melhor que ela.
Fiz a pior coisa que uma amiga poderia fazer. Eu sou pior do que aqueles que o
espancaram. Fui a que a abandonei quando ele mais precisava.
Eu me sinto mal. Sinto
que tinha de ter conversado com Marcelo, ter dito a ele que eu não ligava por
ele ser gay. Sinto que tinha de ter ido até lá e ter sido sua amiga, ter
demonstrado amor, ter feito a diferença. Ter dito a ele que ele podia contar
com alguém. Mas em vez disso, Marcelo apanhou em frente à escola e agora estava
na diretoria sem o apoio de ninguém. Os agressores contariam sua versão e
acreditariam neles.
Fico muito triste quando
não vejo Marcelo nos próximos dias de aula. E ao mesmo tempo irritada por
ninguém parecer se importar com sua falta. Ninguém toca no assunto, ninguém
pergunta mais sobre o garoto calado que vivia com frio. Na verdade, a sala
parece bem mais leve sem ele, como se ter um gay na sala significasse ter de
carregar um peso enorme.
Sentada em minha
carteira, as lágrimas escorrendo no silêncio, espero os dias passarem
vagarosamente. Decido que, quando Marcelo voltar, a primeira coisa que farei é
pedir desculpas; pedirei perdão por ter sido tão idiota. Eu serei sua amiga e
darei todo o apoio que ele precisar, direi a ele que seus sonhos serão
realizados e que ele conseguirá fazer a diferença no mundo. Estarei com ele
para o que der e o vier, e não me importarei mais com o que dirão de mim.
Mas esse dia não chega. Duas
semanas depois da briga, Marcelo comete suicídio em uma forca malfeita, em sua
casa. Eu não poderei mais pedir desculpas, não poderei mais ser sua amiga, não
poderei mais demonstrar o amor que deveria mostrar. Porque Marcelo, agora, está
morto.
Confesso que nunca derramei
tantas lágrimas na vida. A culpa que sinto é grande demais para ser medida. Eu
o matei. Eu poderia ter evitado tudo isso. Eu poderia ter salvado sua vida,
dizendo que ele não estava sozinho no mundo. Mas agora é tarde demais para
qualquer coisa. Eu o matei. Eu o matei...
Marcelo. Quem é Marcelo? Não
é ninguém. Agora, apenas mais um que se foi... não será lembrado por muito
tempo... logo será esquecido como tantos outros que morrem todos os dias. Até
mesmo depois de sua morte, continuarão com seus julgamentos. Mas o que sabem de
sua vida? O que é que sabem sobre sua história?
Marcelo perdeu a mãe
quando ainda era uma criança; ele cresceu com o pai, que o considerava uma
aberração, xingava-o e o batia frequentemente; durante toda a sua adolescência
Marcelo teve problemas com o bullying,
e somados aos problemas de casa, a única forma que Marcelo encontrou para
aliviar toda a dor foi causando mais dor, cortando os pulsos todos os dias no
seu próprio banheiro, o que o levava a sempre ter de vestir blusas para
esconder as cicatrizes. Quando se cortar não estava mais resolvendo os seus
problemas, cansado de ser discriminado e não querendo mais conviver com isso, morrer
para ele foi a sua última opção. Essa é a história de Marcelo. A história que
ninguém vai conhecer ou contar... Ninguém se lembrará do garoto que tinha
ótimas ideias ou do garoto que brilhava em matemática, ninguém se lembrará do
garoto que pintava e que acreditava em fazer desse um mundo melhor. Tudo o que
se lembrarão será de um gay que entrou em uma briga e acabou se matando.
Felipe Ferreira
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